Olhar nos olhos daqueles que nos carregaram no colo e perceber que passamos a ser seu principal, e às vezes único ponto de apoio, é uma situação difícil de ser lidada e principalmente compreendida. Como aceitar que eles, que figuraram durante muito tempo como nossos heróis e exerceram tantas outras funções que os pais exercem como a de educadores, enfermeiros e psicólogos dos filhos, agora se encontram em um estado de fragilidade e carência nunca antes imaginado para estes heróis.
Uso o exemplo do heroísmo, não só porque os dizeres populares nos falam “meu pai, meu herói”, mas porque realmente os pais exercem um papel de exemplo, devotamento e cuidado para conosco que fica marcado em nossas vidas para sempre. Uma marca que traz consigo a imagem do pai ou mãe como apoio, aquele que tudo pode, tudo resolve e consola. Aquele que sabe mais e conhece tudo aquilo que não conhecemos, e para os quais incansavelmente não parávamos de perguntar sobre tudo na “idade das perguntas” que todas as crianças atravessam.
A sensação perante a impotência e carência dos pais idosos em estado debilitado pode fazer surgir à primeira vista, um certo sentimento de distanciamento, que não quer presenciar a situação, por não saber lidar com o desconforto desse novo estado, no qual os papéis se invertem, e somos confrontados com a notícia de que agora os heróis somos nos, queiramos ou não, saibamos ou não como fazê-lo.
Certamente, o distanciamento não é a melhor opção para nenhum dos dois lados, e pode levar ao abandono e à solidão do idoso, mesmo que este esteja assistido pelo apoio de profissionais ou de uma instituição.
Por outro lado, estar sempre por perto e assumir o papel de herói no cuidado com os pais idosos exige compreensão e esclarecimento, sem os quais muitos filhos atravessam este período com pesar e tristeza.
Estreitar o elo que nos liga aos nossos pais, e que em alguns casos já não recebe tanta atenção ou perdeu a força com o passar dos anos, é o primeiro desafio, que se superado pode transformar o período de cuidado em uma jornada mais amena e afetuosa. Não podemos esquecer que afeto e o carinho são alguns dos melhores remédios para estados de enfermidade, depressão e degeneração no idoso, e de que a proximidade com nossos pais é feita não somente através de nossa presença física, mas através do coração. É este tipo de proximidade que nos ajuda a cuidar melhor deles.
O segundo passo nos leva de volta à questão do herói, que entra em cena de forma um pouco diferente daquela através da qual nossos pais entraram em cena na maioria das vezes durante a infância. Este novo herói, que é o filho cuidador, não pode ser o herói que carrega os pais no colo, reforçando sua impotência e apagando o herói que eles mesmos representaram durante a vida. O filho herói é um tipo diferente de herói, é o herói companheiro, que senta ao lado do pai herói para lembrá-lo de que ele não perdeu sua força e suas qualidades. São dois heróis amigos e capazes que ali se encontram lado a lado em meio a uma situação desafiadora, e não somente um único herói filho diante de uma mãe ou pai idoso.
Incentivar a conservação da integridade e da independência nos mais velhos pode ser algo digno de um trabalho mítico, principalmente nos casos em que vemos nosso pais abandonarem a si próprios diante da adversidade. Mas é nessas horas que cabe ao herói filho, ajudar a resgatar muito do que os pais representaram e ainda podem representar mesmo na velhice. Por mais que as limitações físicas e as vezes, psicológicas, digam o contrário, há valores que permanecem. Sabedoria, memória, carinho e capacidades únicas de cada pai ou mãe idosa podem sempre ser relembradas e reconhecidas, tendo uma importe função nessa nova relação. A vontade própria e a personalidade dos mais velhos também devem ser respeitada e levada em conta enquanto o idoso apresentar lucidez, considerando os jeitinhos, manias, decisões e as preferências deles. Pedir conselhos e consultá-los são atitudes significativas, que ajudam o idoso a se auto afirmar e exercitar suas capacidades intelectuais.
O trabalho emocional desta nova fase é igualmente uma jornada que deve ser compartilhada entre heróis. Ao mesmo tempo em que há todo um lado emocional a ser trabalhado nos idosos, é igualmente importante cuidar do emocional interno dos filhos. Se eles forem os primeiros a se entregarem ao desespero nessas horas, aos pais idosos não demorará muito para que compartilhem do mesmo estado, aceitando sua condição de impotência e soterrando para sempre o herói que ainda vive em seu interior.
Cuidar dos pais idosos é de qualquer forma uma tarefa heróica, que algumas vezes se aproxima das lutas e batalhas épicas vividas pelos heróis das histórias e lendas. Mas muitas vezes, essa tarefa também exige que o filho herói mostre uma outra face, a do amor, da calma, da doação e da paciência. Vivenciando ao máximo e da melhor forma possível cada etapa do processo que é cuidar dos pais, aceitando, entendendo ouvindo e compartilhando. Uma atitude um pouco diferente daquela do herói que somente levanta a espada e trava batalhas contra as situações que não aceita.
Paralelamente, a tarefa heróica pode ser também uma tarefa pessoal dos filhos para consigo mesmo, que convida à experiência, mudança e evolução interna durante o processo que é a jornada do cuidado com os pais. Uma jornada na qual os detalhes do caminho importam muito mais do que “como” e “quando” esse caminho pode vir a ter um fim.
Por Cristina Carmelo (Psicóloga especializada no tratamento de idosas)
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