sexta-feira, 1 de abril de 2011

Preconceito

Pela primeira vez, em muitos anos, dona Jane adentrou à sala sem o seu farto riso. Nunca me lembro de tê-la visto desanimada ou sem uma perspectiva de solução, daí a minha surpresa por aquela entrada inusitada. Há muito vínhamos discutindo a sua acuidade visual. Nada muito restritivo, exceto para a sua própria sensação de segurança em ambientes desconhecidos ou pouco iluminados.

Os oftalmologistas consultados foram unânimes no diagnóstico: catarata em evolução, cujo único tratamento seria cirúrgico. Esta é uma condição em que a opinião do cliente é fundamental. Ninguém melhor que ele para, conhecendo a realidade dos riscos e benefícios, decidir qual caminho seguir.

Na consulta anterior, porém, comunicou-me que havia se decidido. Escolheu o oftalmologista, o hospital e a data da operação, vindo apenas me solicitar os exames pré-operatórios. Este, por ser muito breve, foi feito imediatamente. Saiu convicta, com a lista de testes, cujos resultados ela me traria para emitir o parecer final.

Um detalhe, porém, mudou o rumo da história. Por imposição do seu plano de saúde, foi agendada uma “avaliação cardiológica” como condição para autorizar o procedimento. 

Apresentou-se à consulta no local e data marcados, munida do meu relatório inicial e dos resultados laboratoriais. Após algumas perguntas e um rápido exame físico, foi lhe dado o veredicto, redigido no receituário: paciente com 94 anos, diabética e hipertensa, não está em condições cirúrgicas.

Liguei a quem acabara de emitir o nefasto laudo, argumentando de que esta cliente nunca tivera aumento dos níveis pressóricos ou de glicemia e que seu estado de saúde mantinha-se estável há pelo menos duas décadas. Lacônicamente, respondeu com uma única frase: eu nunca autorizo cirurgia para quem tem mais de 90 anos! E desligou.

Voltando à sala onde me esperava dona Jane, expliquei que nem todos já se encontram preparados para conviver com esta nova realidade: idosos saudáveis.  Uma boa parte da sociedade ainda confunde a idade com as doenças e, por isso, julga erroneamente as situações individuais. Muitos chamam isso de preconceito. Prefiro acreditar que seja apenas falta de informação adequada para a formação de um conceito. Fiz um relatório extenso, avaliando cada componente do seu organismo e enfatizando as suas adequadas condições de saúde no âmbito mais amplo possível.

Cerca de duas semanas após, recebi um telefonema com o habitual riso que faltara na última visita. Entre as inúmeras considerações sobre o quanto tinha sido bem tratada durante a operação e de como todos se admiraram com a sua vivacidade, salientou: estou feliz por ter conseguido fazer aquilo que eu queria fazer.

Wilson Jacob Filho
Nota do editor: médico geriatra, professor de geriatria na USP e coautor do livro “Geriatria e Gerontologia: O que Todos Devem Saber”. Homenagem do portal Cuidar de Idosos ao professor e mestre de muitos geriatras brasileiros.
Este artigo foi extraído de: http://www.moginews.com.br/materias/?ided=1123&idedito=83&idmat=86325

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